ENTREVISTA/KEVIN WERBACH: ALGUNS BCS VÃO FREAR COMPETIÇÃO DE PLATAFORMAS, E OUTROS CONVERSARÃO

28/04/2023
Kevin

"Os BCs não querem abrir mão da política monetária, o que é apropriado, e por isso o projeto Libra do Facebook falhou", disse ele ao Broadcast. "Os sistemas vão competir, mas terão controle pela regulação. Alguns BCs tentarão parar a competi-ção, e outros tentarão conversar." Kevin Werbach, professor da Universidade da Pensilvânia. Foto: Fernando Scarpante/Tecban O especialista, que atuou na equipe de transição do governo de Barack Obama nos Estados Unidos e ajudou a desenhar a abordagem americana à política de internet durante o governo de Bill Clinton, esteve no Brasil na semana passada, e palestrou sobre o futuro do dinheiro em evento promovido pela Tecban. Na visão dele, o sucesso das moedas digitais dos BCs dependerá das vantagens que trarão frente a ferramentas que já existem. "Em um país como a China, em que o Partido Comunista Chinês tem enorme controle, a população se sente mais confortá-vel em utilizar o Alipay, o WeChat e outros sistemas", afirmou ele, ao comentar a adoção do yuan digital, iniciada em 2014.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

Broadcast - No Brasil, discute-se a desmaterialização do dinheiro. Não temos ainda a moeda digital do Banco Central (CBDC, na sigla em inglês), mas temos Pix e meios eletrônicos muito difundidos. Em um País como o Brasil, este é o futuro? Kevin Werbach - O dinheiro está se desmaterializando em todo o mundo. A quantidade de dinheiro vivo varia de pais para país, mas é uma tendência que vemos em todos os lugares em que há pagamentos em tempo real. No Reino Unido, houve uma dramática migração do dinheiro vivo quando o sistema passou a operar. Broadcast - Como isso muda o sistema financeiro como o conhecemos? Muitos especialistas dizem que a quebra recente de alguns bancos se deve, em parte, à rapidez com que se pode tirar o dinheiro das instituições.

Werbach - Não é apenas poder sacar rápido, mas como a informação se dissemina rápido e o pânico que leva a uma corrida bancária pode acontecer da noite para o dia através das mídias sociais. É uma preocupação que os reguladores precisam incorporar, mas não mudou de uma hora para a outra. Está relacionada à transformação digital do dinheiro, como aconteceu com as mídias sociais.

Broadcast - Como endereçar esses problemas? Werbach - Regulação sempre é parte da resposta. A maior parte do trabalho que faço hoje em dia é com blockchain, e quem promove a tecnologia sempre diz que a regulação se move devagar. Nem sempre isso é ruim, os reguladores devem manter o foco no que é importante. Vimos por décadas que sempre que há uma grande inovação financeira, não há salva-guardas regulatórias suficientes, e há muitos golpes. A regulação precisa evoluir, mas precisamos construir proteções na tecnologia. Parte delas envolve transparência. Não é apenas o que os reguladores fazem, mas também como bancos e agen-tes desenham os sistemas.

Broadcast - Você vê uma diferença relevante entre países desenvolvidos e emergentes na desmaterialização do dinheiro? Werbach - Certamente, mas há diferenças dentro dessas categorias. Há partes do Brasil que são um país desenvolvido, e há partes que não são. O mesmo acontece nos Estados Unidos. O sarrafo é mais alto do que costumava ser. Em um mundo em que mesmo pessoas pobres têm acesso a celular, há mais acesso a serviços financeiros que há 20 anos. A desigualdade diminuiu, em parte porque os países em desenvolvimento não têm tanta infraestrutura legada. Com o Pix, o Brasil está bem mais avançado que os EUA em pagamentos em tempo real.

Broadcast - A China tem yuan digital há alguns anos, por exemplo. Há casos bem-sucedidos de moedas digitais oficiais?

Werbach - A China é a mais avançada, mas sofre para fazer com que as pessoas utilizem a moeda digital. Em um país como a China, em que o Partido Comunista Chinês tem enorme controle, a população se sente mais confortável em utilizar o Alipay, o WeChat e outros sistemas. A questão é o benefício para as pessoas na comparação com o que elas já têm. Não há dinheiro vivo na China, todo mundo utiliza aplicativos. Eu vejo as CBDCs como uma oportunidade de entender quais características os países querem em seu dinheiro. Nos Estados Unidos, há uma preocupação grande com a privacidade. Na maioria dos países, os Bancos Centrais não querem ser deixados para trás: querem se livrar do papel-moeda, ou desenvolver alguma coisa para dizer que desenvolveram. Não há muitos lugares em que estejam claros os casos de uso. Broadcast - No Brasil, há uma CBDC em criação, mas o foco parece ser criar uma ponte para o digital. Há diferenças para o que já existe?

Werbach - Apenas um Banco Central pode emitir moedas, mas eu acredito que seja importante ter espaço para atividade privada e questões sobre o desenho do sistema. Broadcast - No Brasil, temos o Pix, mas também o WhatsApp buscando escala. Ele poderia competir com sistemas oficiais em países como o Brasil? Werbach - Certamente. Tudo terá dinheiro, as plataformas sociais terão capacidades em pagamentos. À medida que o dinheiro se torna mais digital e as stablecoins (criptomoedas atreladas a ativos estáveis) tornem mais fácil a transição entre sistemas, haverá mais plataformas. Os BCs não querem abrir mão da política monetária, o que é apropriado, e por isso o projeto Libra do Facebook falhou. Os sistemas vão competir, mas terão controle pela regulação. Alguns BCs tentarão parar a competição, e outros tentarão conversar. Broadcast - A era das criptomoedas passou?

Werbach - Houve três ciclos desde que o Bitcoin foi lançado, em 2009, e toda vez que entramos em um inverno cripto, as pessoas dizem que morreu, mas há muito mais atividade que nos períodos anteriores. Saímos dos picos especulativos, mas há muitas equipes construindo a tecnologia. Há questões sobre os casos de uso, mas a tecnologia não vai sumir. A inteligência artificial precisa de dados, há preocupações sobre como eles serão utilizados, e a única forma de descentralizá-los sem perder a propriedade é o blockchain. Há uma convergência. Broadcast - Como as CBDCs e as moedas descentralizadas vão conviver? Werbach - As CBDCs terão que interoperar, então o papel dos governos será o de estabelecer parâmetros, e garantir que o dinheiro terá as características desejadas, mas permitir a inovação. As criptos e stablecoins são globais. As CBDCs poderão inteoperar, mas não serão globais.