Bancos e startups 'desenham' casos de uso do real digital
Privacidade, interoperabilidade de redes, segurança cibernética e ganhos de eficiência em transações que hoje são onerosas, dependem de inúmeros intermediários e, muitas vezes, se perdem na burocracia e na falta de liquidez. Essas são as características que deverão nortear o “desenho” do real digital, a versão criptográfica da moeda brasileira, cujos principais casos de uso foram apresentados ontem por bancos e startups do universo de ativos digitais em evento do Banco Central e da Federação dos Servidores do BC (Fenasbac), em Brasília.
No lugar de definir regras de baixo para cima para que os participantes do mercado se engalfinhassem em descobrir o que seria possível explorar comercialmente, o Banco Central fez o caminho inverso. Pediu que os interessados, incluindo algumas das mais disruptivas plataformas de criptoativos do mundo, sugerissem soluções para problemas que há muito tempo as finanças tradicionais e os incumbentes fracassaram em atender. A lista vai desde transferir dinheiro para o exterior, viabilizar empréstimo entre desconhecidos, comprar um carro usado até viabilizar capital de giro para empresas pequenas e produtores rurais desassistidos.
A maioria das soluções apresentadas foi do tipo DvP (Entrega versus Pagamento), aquela em que os chamados contratos inteligentes das blockchains são programados para entregar algo sob a forma digital, “tokenizada” (imóvel, moeda estrangeira, aplicação financeira, criptomoeda etc), mediante pagamento de dinheiro também tokenizado. Daí a necessidade de o dinheiro também ser no formato digital. Atendidas as condições pré-estabelecidas, a blockchain faz a troca simultânea de um token pelo outro, sem volta, registrado de forma descentralizada em diversos computadores no mundo, minimizando ou inviabilizando a chance de fraude.
O Itaú, por exemplo, testou dois serviços: transferência de recursos do Brasil para a Colômbia, onde também tem presença, com redução pela metade dos intermediários, e um aplicativo “amigável” de investimento para rentabilizar ativos digitais que ficariam parados na conta do usuário. Já o Santander desenvolveu um sistema para venda de casas e carros usados entre desconhecidos, com mudança de titularidade automática - tecnicamente possível, mas que só será viável se tiver integração com cartórios e Detrans.
A Visa apresentou um projeto de financiamento programável com moedas digitais de bancos centrais (CBDCs, na sigla em inglês) para pequenos e médios produtores agrícolas. A iniciativa consiste em um mecanismo no qual o produtor combina o preço e a data de entrega de uma determinada commodity para seu cliente e o pagamento deste recebível pode ser adiantado por meio de um leilão executado via contrato inteligente.
“Quem oferece a menor taxa para a antecipação do recebível ganha e o contrato é executado automaticamente”, disse Cristiane Taneze, diretora executiva de inovação da Visa do Brasil.
O grande destaque da proposta foi o mecanismo de interoperabilidade entre criptomoedas desenvolvido pela Visa e chamado Canal de Pagamentos Universal (UPC, na sigla em inglês). O projeto recebeu elogios de Fabio Araujo, coordenador do real digital no BC.
Criptonativos
Entre as empresas criptonativas, o MB apresentou o protótipo de uma plataforma de transação de criptoativos e tokens ligada ao real digital em uma blockchain aberta usando identificação descentralizada de usuários para cumprir com os requisitos de KYC, sigla para “conheça seu cliente”, e de sigilo bancário que o BC exige.
A plataforma descentralizada de empréstimos Aave, em parceria com a fornecedora de tecnologia para custódia de criptoativos israelense Fireblocks e a blockchain Polygon, por sua vez, mostrou sua proposta de “pool de liquidez” permissionado, na qual o regulador, no caso o BC, colocaria os parâmetros para definir quem está ou não apto a participar da captação e investimento de recursos.
A fintech Capitual junto com a TecBan, gestora dos caixas eletrônicos Banco 24 Horas, desenvolveu um protocolo também do tipo DvP envolvendo armários inteligentes conectados por meio da tecnologia de internet das coisas (IoT). No caso, os armários inteligentes atuam como uma espécie de cofre, que só libera o pagamento quando o usuário insere o código da compra para pegar uma encomenda. A proposta é facilitar a chegada de mercadorias em locais de difícil acesso, como em comunidades carentes, por questões de segurança.
Já a Febraban testou um modelo de pós-negociação de debêntures envolvendo o real digital com o objetivo de automatizar e ganhar eficiência, além de ampliar o horário das transações, preservando o papel dos atuais intermediários do setor. O modelo poderá inclusive ser adaptado para transações envolvendo outros ativos financeiros na versão tokenizada, como os títulos do Tesouro.